CAPÍTULO 1
Introdução
Nos últimos anos, a reforma tributária tem sido tema diário de discussões políticas e acadêmicas. Diversos artigos, entrevistas e matérias foram publicados. Muitos deles, na contramão de evidências empíricas, reproduzem ideias equivocadas sobre o papel dos tributos na economia, seu impacto nas relações federativas e no desenvolvimento do país.
A proposta deste artigo é rever mitos recorrentes que sustentam esses argumentos e contribuir para que sociedade e Parlamento conheçam as consequências das decisões que podem ser tomadas no futuro.
Para fins de clareza do texto, referências ao termo reforma tributária devem ser lidas como a implementação, no Brasil, de imposto nos moldes de um imposto sobre valor agregado (IVA) na tributação sobre o consumo.
CAPÍTULO 2
Regressividade
Mito: o IVA aumenta a regressividade do sistema tributário e prejudica os mais pobres.
Contraponto: o IVA diminui a regressividade em relação aos atuais tributos indiretos e será benéfico para os mais pobres.
O mito se baseia no argumento de que a adoção de um imposto sobre consumo com alíquota única (um Imposto sobre Valor Agregado – IVA clássico), como o imposto sobre bens e serviços (IBS) proposto na reforma (PEC 45/19), prejudicaria os mais pobres por não permitir alíquotas diferenciadas para produtos usualmente consumidos por eles, como os que compõem a cesta básica.
Ao contrário do mito, o mesmo recurso que atualmente é despendido na desoneração da cesta básica pode ser utilizado para promover uma redução bem maior da pobreza e da desigualdade. Além disso, desonerações seletivas acarretam três problemas: (a) não é possível restringir o benefício a produtos de consumo popular (pense no caso do açúcar, que tanto pode ser o básico – branco refinado – quanto as sofisticadas variações do açúcar de coco, light, orgânico etc.); (b) elas beneficiam ao mesmo tempo os pobres e os ricos, pois os produtos básicos também são consumidos pelos mais ricos, o que diminui a potência da política redistributiva; (c) a redução não é necessariamente repassada de forma integral aos preços, sendo parte dela apropriada pelas empresas. E esses três pontos são agravados na medida em que a perda de arrecadação com as desonerações é compensada com o aumento da carga tributária sobre as chamadas blue-chips (combustíveis, energia e comunicações), insumos essenciais e que acabam onerando bens essenciais e de alto peso na cesta de consumo dos mais pobres, como o gás de cozinha e a energia elétrica residencial.
De acordo com o Boletim Mensal sobre os Subsídios da União de setembro de 2019, dos quase R$ 15,9 bilhões relativos à renúncia fiscal da desoneração da cesta básica na tributação do PIS/COFINS, apenas R$ 1,6 bilhão foi destinado aos 20% mais pobres. Os 20% mais ricos se apropriaram de R$ 4,5 bilhões (dados de 2018).
Um estudo de Giovanni Padilha elaborado com base em dados das desonerações do ICMS no Rio Grande do Sul em 2015 também mostrou que a maior parte dos benefícios fiscais são apropriados pelas pessoas de alta renda: os 30% mais pobres receberam menos de 14% do benefício, enquanto os 30% mais ricos se apropriaram de 50%. Isso ocorre porque as desonerações hoje se aplicam não apenas a alimentos, que possuem maior peso relativo na cesta dos mais pobres, mas a produtos consumidos essencialmente pelos mais ricos (como automóveis, por exemplo).
Por esses motivos é mais eficaz tributar todos os produtos igualmente e, com o ganho de receita oriundo do fim da desoneração da cesta básica, ampliar os gastos dos programas sociais. O Ministério da Fazenda, em 2017, estimou que destinar R$ 1 bilhão ao Bolsa Família produz um impacto 12 vezes maior para a queda da desigualdade do que desonerar em R$ 1 bilhão a cesta básica.
Além disso, como o IBS simplificará a tributação, a ponto de ser possível identificar exatamente o montante de tributos pago pelo consumidor final, torna-se possível focalizar uma eventual isenção tributária para as famílias mais pobres. Basta que os indivíduos inscritos no Cadastro Único de assistência social do Governo Federal informem seus CPFs para receberem, diretamente na nota fiscal, o abatimento total ou parcial de tributos.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/19 prevê a adoção desse mecanismo de devolução do imposto às pessoas de baixa renda. Sistemática semelhante consta das recentes propostas de reforma fiscal apresentadas pelos Estados de São Paulo e do Rio Grande do Sul.
CAPÍTULO 3
Repercussões em preços
Mito: a reforma tributária elevará os preços dos bens e serviços que atualmente são isentos ou têm alíquota menor, prejudicando a população de baixa renda.
Contraponto: a reforma será benéfica para os mais pobres, pois reduzirá a carga sobre os bens e serviços tipicamente consumidos por eles.
A reforma não implicará aumento de carga tributária. Os aumentos de tributação que ocorrerem em alguns bens e serviços serão compensados pelas reduções em outros. Esse rebalanceamento beneficiará os mais pobres.
A carga tributária atualmente é maior sobre o consumo de mercadorias do que sobre o consumo de serviços, e na cesta de consumo das famílias mais pobres há mais mercadorias, enquanto na das mais ricas há mais serviços. Um imposto com alíquota uniforme tributará menos as mercadorias e mais os serviços, favorecendo as famílias de baixa renda.
Orair e Gobetti simularam a incidência, nos diferentes decis de renda da população, da atual tributação sobre consumo e da tributação que decorreria do IBS. O resultado é que, com o IBS, os nove decis de renda mais baixo teriam uma redução de carga, e somente os 10% mais ricos teriam um aumento de impostos.
Há, ainda, o argumento de que com o envelhecimento da população até mesmo os mais pobres aumentarão seu consumo de serviços, em especial os de saúde. Ora, eles só aumentarão esse consumo se tiverem renda para fazê-lo. Do contrário, por mais que precisem, não terão acesso a eles. A reforma tributária representa provavelmente a mudança estrutural com maior impacto positivo sobre o crescimento econômico de médio e longo prazo, e é ela que viabilizará o acesso a esse consumo. Deixar de fazê-la a pretexto de não onerar um serviço que só estará acessível aos pobres caso a reforma seja feita seria um contrassenso.
CAPÍTULO 4
Benefícios fiscais
Mito: alíquotas diferenciadas ou regimes especiais são instrumentos essenciais para estimular o crescimento econômico.
Contraponto: benefícios tributários seletivos diminuem a produtividade da economia e, portanto, o potencial de crescimento do PIB.
Quando a autoridade pública define qual produto terá um incentivo tributário e, para compensar a perda de receita decorrente do benefício, qual terá tributação maior, está avocando a si a escolha de qual setor da economia deve se desenvolver, em detrimento dos demais.
Inexiste um sistema perfeito de planejamento que indique quais os produtos ou empresas são mais capazes de maximizar o crescimento de um país. Em uma economia de mercado, muitas iniciativas promissoras dão errado porque as tecnologias e os padrões de consumo mudam. A poderosa Kodak sucumbiu à era das câmeras digitais. A fabricação de computadores, outrora tecnologia de ponta, virou commodity, com a agregação de valor migrando para a produção de softwares. Cidades industriais dos EUA, antigos polos econômicos pujantes, atualmente sofrem com a decadência.
Um sistema tributário que se preste ao uso intensivo de diferenciação de alíquotas acaba por tornar o país vítima de grupos de interesse. Estes atores privados se mobilizam para obter favores como benefícios fiscais, que se materializam de diversas formas: créditos presumidos, alíquotas reduzidas, regimes especiais etc. Atuam para buscar rendas (rent seeking) em típico caso de captura do Estado: o privilégio de alguns, com acesso ao poder político, financiado pelo sacrifício dos demais. O objetivo de maximizar o crescimento acaba sucumbindo ao objetivo de maximizar ganhos privados de quem tem mais acesso ao poder.
Em termos práticos, um sistema tributário em que é possível adotar múltiplas diferenciações de alíquotas faz com que as decisões governamentais substituam os sinais de mercado quanto a:
1. que produtos ou serviços uma empresa vai produzir ou prestar – o custo tributário pode induzir uma empresa a produzir um insumo ou realizar um serviço internamente que seria mais barato e eficiente comprar de outra empresa;
2. que método produtivo a empresa vai usar – tecnologias mais modernas podem depender de insumos que são mais caros por estarem submetidos a alíquotas tributárias mais elevadas, induzindo empresas a continuar produzindo com tecnologia defasada;
3. onde a empresa vai produzir – o incentivo dado a investir em uma parte remota do território acaba onerando o sistema produtivo com elevados custos de transportes, logística e contratação de mão de obra;
4. quais empresas sobrevivem no mercado – tratamento diferenciado para um grupo de empresas pode fazer com que algumas de baixa produtividade sobrevivam apenas porque pagam menos tributos enquanto outras, mais eficientes, não suportem o peso da tributação elevada.
Também aumenta o custo administrativo da empresa para calcular e pagar impostos. Um sistema com múltiplas alíquotas e benefícios diferenciados se torna mais complexo, permitindo diversas interpretações, o que origina contencioso tributário e todo o custo de transação a ele associado.
Em 2019, a soma dos créditos tributários cobrados em processos judiciais e administrativos por todos os entes federativos foi de R$ 5,4 trilhões, que equivalem a 75% do Produto Interno Bruto (PIB). Esse valor representa mais do que o dobro da arrecadação total dos entes federativos naquele ano.
O quadro desfavorável é reforçado pelo indicador global Tax Complexity Index, elaborado pelas universidades alemãs LMU Munich e Paderborn. O Brasil se mostra o país com maior complexidade tributária entre 100 jurisdições avaliadas.
Somados, esses elementos tornam a economia menos produtiva e, portanto, com menor capacidade de crescimento. Geram o problema identificado na literatura econômica como má alocação de recursos (misallocation): recursos escassos da sociedade são aplicados de forma ineficiente.
A literatura empírica estima elevado impacto da má alocação de recursos no potencial de crescimento econômico. Alguns números significativos devem ser ressaltados, a título de exemplo: se a China e a Índia reduzissem o seu nível de má alocação ao observado nos EUA, a produtividade na manufatura chinesa cresceria entre 31 e 51% e, na Índia, aumentaria entre 49% e 51%.
No Brasil, a realocação de capital e trabalho das firmas manufatureiras pouco produtivas para as muito produtivas elevaria a produtividade em 40%. No setor de serviços, os ganhos seriam ainda maiores, passando de 200%.
Certamente esses efeitos não decorrem apenas de distorções do sistema tributário. Distorções regulatórias no mercado de trabalho, restrições ao comércio internacional, direcionamento do crédito pelo governo e outras intervenções mal desenhadas contribuem para o quadro de baixa produtividade e crescimento.
Todavia, as distorções do sistema tributário são sempre fatores de primeira ordem na literatura sobre má alocação de recursos. Estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) avaliou a correlação entre o modelo de tributação sobre o consumo e o crescimento econômico. A partir de dados de 30 países membros da OCDE, referentes ao período de 1970 a 2016, o estudo concluiu que o alargamento da base do IVA (menos diferenciação de alíquotas e menos isenções) é mais favorável a um maior crescimento a longo prazo do que o uso daqueles instrumentos compensados por um aumento da alíquota padrão.
CAPÍTULO 5
Desenvolvimento local
Mito: o IBS retirará dos Estados mais pobres a possibilidade de conceder benefícios para atrair investimentos para seus territórios.
Contraponto: a reforma aumentará a receita dos Estados mais pobres e não impedirá a execução de política de desenvolvimento regional, além de resolver conflitos que são ruins para todos os Estados. Também ampliará significativamente a receita da maioria dos Municípios, proporcionando uma distribuição mais equânime dos recursos e, portanto, mais eficiente para os cidadãos.
Atualmente, o ICMS é pago parcialmente ao Estado onde ocorre a produção (origem) e parcialmente ao Estado onde o bem é consumido (destino). A reforma tributária propõe a integral tributação no destino.
Do ponto de vista regional, a primeira preocupação que surge com a possibilidade de instituição de um IVA com incidência no destino é o fim do espaço para a guerra fiscal. Estados de menor renda per capita perderiam um instrumento para atrair empresas. Atualmente, eles lançam mão de artifícios que reduzem a parcela da tributação na origem, tornando mais barato para as empresas produzirem em seus territórios.
Todavia, é preciso observar, em primeiro lugar, que a tributação no destino aumentará o potencial de arrecadação dos Estados menos desenvolvidos. O deslocamento da tributação para o destino beneficiará os Estados que são mais consumidores que produtores. Jurisdições como São Paulo, que fornecem produtos industrializados para todo o país, deixarão de arrecadar a parcela hoje tributada na origem. Essa parcela passará a ser capturada pelos Estados que recebem e consomem essa produção.
Como afirmam Orair e Gobetti, “a migração para o novo modelo de arrecadação e partilha que prioriza o destino já embute um efeito de equalização fiscal que redistribui receitas em favor das localidades com menor grau de desenvolvimento socioeconômico, parte das quais poderiam ser canalizadas para uma política de desenvolvimento regional muito mais eficiente do que a promovida hoje via guerra fiscal”.
Esses autores simularam qual seria o efeito final, de longo prazo, após o período de transição proposto na PEC 45/2019, que tramita na Câmara dos Deputados, e que visa instituir um IVA sob o princípio do destino. Seus números são muito claros: todos os Estados do Nordeste e do Norte, à exceção do Amazonas, aumentariam sua participação na arrecadação do IVA quando comparada à participação atual agregada de cada Estado e de seus Municípios no ICMS e no ISS.
Além disso, não se pode deixar de observar que a guerra fiscal está erodindo a base de arrecadação do ICMS. Os incentivos dados às empresas que dispõem de mais mobilidade acabaram levando os Estados a compensar a perda de receita tributando fortemente alguns poucos setores, em especial os de combustíveis, energia elétrica e telecomunicações, como salientado no Mito nº 1, acima.
Contudo, a revolução na área de comunicação, com redução dos serviços de voz, tem corroído uma das principais bases do ICMS, reduzindo o potencial de arrecadação. Fenômeno similar começa a atingir a área de energia elétrica, com a popularização e redução do custo de autogeração de energia solar.
Há situações em que um Estado arrecada o tributo e outro fica obrigado a restituir o crédito ao contribuinte, sem nada ter arrecadado. Muitos Estados se recusam a pagar o crédito, prejudicando o contribuinte e a economia como um todo: nossas exportações, por exemplo, resultam mais caras e menos competitivas, pois os créditos não restituídos acabam compondo o preço do bem exportado.
A perda de arrecadação e os conflitos prejudicam a todos. A guerra fiscal se tornou disfuncional para todos e deixou de ser uma opção de política de desenvolvimento regional. Não é por outro motivo que, ao contrário de reformas tentadas no passado, a atual conta com apoio da ampla maioria dos governos estaduais e municipais, que concordam com o desenho geral e discutem apenas pontos específicos.
Há diversos outros instrumentos de política de desenvolvimento regional mais eficazes que o uso dos benefícios tributários – no caso do ICMS, muitas vezes chegam a beneficiar produtos importados em detrimento de nacionais. O Brasil já conta, no nível federal, com fundos de desenvolvimento regional. Os ganhos de arrecadação poderão financiar investimentos em transportes e logística, que aproximarão os diversos mercados e darão mais competitividade a Estados mais distantes dos grandes centros consumidores. Reformas regulatórias podem gerar ganhos de competitividade a Estados menos desenvolvidos, a exemplo da reforma do marco regulatório da navegação de cabotagem, que viabilizará atividades portuárias em diversas regiões do país.
No âmbito estadual, as receitas mais robustas dos Estados menos desenvolvidos, que decorrerão dos efeitos acima descritos, podem ser parcialmente destinadas a subsídios a empresas, caso essa seja a decisão do Executivo e do Legislativo local. Isso poderá ser feito de forma explícita, com o orçamento estadual indicando o gasto com o subsídio e as empresas beneficiadas. Essa transparência, inexistente no caso dos benefícios tributários, ajudará o eleitor a avaliar a conveniência, os custos e os benefícios do subsídio.
Não faz sentido, portanto, se opor aos benefícios que advirão da reforma tributária sob o pretexto de garantir instrumentos de desenvolvimento regional. Esses não faltarão, e o atual sistema tributário já esgotou a sua capacidade para ser usado como política de atração de investimentos.
CAPÍTULO 6
Pacto federativo
Mito: o IBS viola o pacto federativo ao obrigar que a tributação do consumo seja uniforme, sem flexibilidade para decisões locais, inclusive quanto à possibilidade de não tributar (conceder isenções etc.).
Contraponto: os Estados e os Municípios poderão aumentar ou reduzir a sua tributação a qualquer tempo, inclusive a alíquota de referência nacional. Essa alteração, contudo, deve valer para todos os bens e serviços. Não poderá ser aplicada uma desoneração setorial, ou seja, escolher um ou mais bens, um ou alguns serviços. Isso evita que o sistema tributário atue em prejuízo dos demais entes da federação e distorça as decisões de produção e consumo mediante alteração dos preços relativos.
A reforma tributária não viola o pacto federativo. Pelo contrário, o fortalece. Os entes instituirão conjuntamente um novo tributo incidente sobre o consumo. Além disso, os entes subnacionais (Estados e Municípios) terão ampliação de sua base de incidência, ou seja, ganharão competência tributária. Municípios, por exemplo, não dispõem hoje de competência para tributar operações envolvendo bens, como ocorrerá após a instituição do IVA.
Os entes federativos terão autonomia assegurada para a definição de suas alíquotas do IVA, tal como proposto na PEC 45/19. Igualmente preservarão a competência para (i) arrecadar, por meio da Agência Tributária Nacional, autarquia de representação igualitária entre os entes, como sugerido pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) na atualização do texto da PEC 45, e (ii) gerir a alocação dos recursos arrecadados. Haverá apenas limitações à concessão de benefícios e à diferenciação de alíquotas por categorias de produtos e serviços, justamente para que não se criem distorções que prejudiquem o restante do país e a produtividade da economia (a esse respeito, vide o Mito nº 3, acima).
Vale lembrar que Municípios e Estados, hoje, ao instituírem o ISS e o ICMS em seus territórios, por meio de normas locais, já encontram limitações previstas em Leis Complementares de âmbito nacional (LC 116/03 e 87/96, respectivamente). Essas leis atendem a exigência do texto constitucional, que no artigo 146 reserva a esses veículos normativos, editados pelo Congresso Nacional, a disciplina sobre conflitos de competência e definição dos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes dos impostos. Igual lógica será aplicada agora para o IVA, pois caberá a uma única Lei Complementar, de abrangência nacional, instituir e regular o imposto.
A unificação de ICMS e ISS reduzirá significativamente o contencioso que decorre da insegurança jurídica em torno da diferenciação entre os conceitos de bens e serviços, tornando o sistema mais simples e menos custoso para as administrações locais.
Após a reforma, o pacto federativo também será fortalecido pela maior eficiência dos entes, que deverão desenhar e implementar políticas públicas por meio de despesas explicitamente alocadas em seus orçamentos, e não com base em incentivos fiscais, de baixa transparência e amplamente apontados na literatura econômica como uma forma ineficiente de promover desenvolvimento a longo prazo.
Como dissemos no questionamento aos Mitos nº 1 e 3, acima, é muito mais eficiente o ente utilizar a arrecadação para gerar um ambiente local competitivo, com serviços públicos adequados e boa qualidade de vida, do que atrair investimentos por meio de incentivos artificiais.
Por fim, como bem ressaltado por Melina Lukic, a crítica que relaciona vedação de concessão de incentivos fiscais à ofensa ao pacto federativo, por impedir que os entes realizem políticas fiscais para atrair investimentos, revela duas falhas: primeiro, acaba por defender a manutenção da guerra fiscal, prática predatória e altamente prejudicial aos próprios Estados e ao país; segundo, porque, como o IVA é tributo sobre o consumo, ou seja, devido ao local do destino do bem ou serviço, torna-se absolutamente irrelevante a concessão de benefício fiscal no local de origem para atrair empresas.
CAPÍTULO 7
Economia digital
Mito: o IVA é um tributo obsoleto e inadequado à nova economia digital.
Contraponto: qualquer imposto sobre bens e serviços, inclusive e especialmente os IVAs, não faz distinção entre tributação de bens, de serviços ou de intangíveis, como existe no atual sistema brasileiro. Os debates internacionais focam a dificuldade de tributar o lucro das empresas digitais, já que o imposto de renda incide na origem (local de produção), e não no destino (local de consumo), como os IVAs.
Esse mito é muito difundido por quem defende a criação de um imposto sobre transações financeiras em contraposição à adoção de um IVA. Supostamente, a tributação eletrônica de transações financeiras seria mais moderna em sua operacionalização ao atuar diretamente nos bancos de dados daquelas transações. Contudo, os defensores dessa opção não levam em conta o impacto negativo desse modelo de tributação sobre o crescimento econômico, como já largamente identificado na literatura acadêmica.
Na prática, poucos países do mundo tributam transações financeiras, e nenhum país que adota o IVA manifestou a intenção de abandoná-lo por não conseguir tributar as transações que surgem na economia digital. O IVA apresenta a flexibilidade de ser cobrado em cadeias longas, em que o valor é adicionado gradualmente em cada etapa, ou mesmo em cadeias curtíssimas, assumindo a forma de um retail sales tax.
Em termos operacionais, o IBS será ainda mais moderno que a simples prática de descontar um percentual de transações financeiras que ocorrem em meios eletrônicos de compensação bancária. O IBS se baseará no sistema de notas fiscais eletrônicas e construirá uma rotina automática de créditos e débitos tributários, permitindo ampla automação do cálculo e cobrança dos tributos.
Em termos de incidência tributária, na construção lógica do IBS ou de outros IVAs, não há nada que impeça a adequada tributação de transações comerciais da economia digital. A incidência de forma indiscriminada sobre o ato de consumo, independentemente de ser o consumo de um bem, serviço ou intangível, ressalta a vantagem do IBS sobre o modelo atual. Evita, por exemplo, intermináveis discussões a respeito do enquadramento de determinadas situações à hipótese prevista na norma jurídica, como a que se arrasta no Judiciário para definir se softwares devem ser considerados bens ou serviços, e, assim, tributados pelo ICMS ou pelo ISS.
Há um argumento incorreto de que, nas transações digitais, o valor adicionado é muito maior no início da cadeia de circulação, ou seja, o valor que se agrega ao produto nas etapas subsequentes é cada vez menor, o que, em uma regra de não cumulatividade redundaria na acumulação de créditos tributários, pois o adquirente não conseguiria compensar o imposto que incidiu na etapa anterior.
Essa afirmação se mostra matematicamente incorreta. Basta um exemplo para demonstrar que não haverá acúmulo de créditos tributários, ainda que o valor agregado tenda a diminuir em cada etapa ao longo da cadeia:
* Empresa A adquire R$100 de insumos e, após embutir tecnologia única e avançada, vende seu produto final por R$1.000. Em um modelo IVA com alíquota padrão de 20%, Empresa A se creditaria de R$20 na entrada e registraria débito de R$200, recolhendo ao fisco R$180.
* Empresa B adquire o produto por R$1.000 e o revende por R$1.100, adicionando pouco valor nessa etapa. Creditou-se de R$200 e lançou débito de R$220, recolhendo R$20 ao fisco.
A técnica de creditamento no IVA consiste em uma operação matemática simples que subtrai do imposto devido o imposto pago nas operações anteriores. Impossível, portanto, haver acumulação de créditos, mesmo que o valor agregado seja maior nas primeiras etapas.
A hipótese de acúmulo de créditos ocorreria somente com regras que prevejam alíquotas menores ao longo da cadeia (sendo esta exatamente a situação que se busca evitar ao prever alíquota única) ou saídas não tributadas. A hipótese mais usual de acúmulo de créditos decorre das operações de exportação, não tributadas em atendimento ao princípio de tributação no destino, pilar dos IVAs. Além disso, todas as propostas de reforma da tributação sobre o consumo em discussão hoje preveem o pagamento em dinheiro, pelo fisco, ao contribuinte, do crédito acumulado nessas operações (como se faz, por exemplo, nas restrições do Imposto de Renda Pessoa Física), o que não traz maiores dificuldades à implementação do modelo.
Outro argumento é que se propõe extinguir no Brasil um modelo de tributação que está sendo criado na Europa para lidar com a dificuldade de tributar transações digitais. O regime cumulativo de PIS/Cofins, que a reforma pretende eliminar, teria a mesma natureza do modelo que a França adotou para tributar os serviços digitais, com o objetivo de prevenir a erosão das bases tributárias pelo deslocamento de lucros para paraísos fiscais.
De fato, apesar das críticas e da falta de consenso entre países-membro da OCDE, a França adotou, em 2019, uma solução unilateral chamada “taxe GAFA”, que impõe a cobrança de 3% das receitas auferidas por gigantes de tecnologia. Essa seria uma tributação sobre faturamento similar ao nosso PIS/COFINS cumulativo.
A decisão francesa, contudo, é uma medida (controversa) voltada à tributação do lucro das empresas, não relacionada à tributação sobre o consumo, que é o objeto da reforma tributária em discussão. Não representa um atestado de inadequação do IVA, pois este não se destina à tributação da renda/lucro.
A questão de empresas que operam virtualmente e escolhem situar suas sedes em jurisdições com baixa ou nenhuma tributação da renda está sendo tratada no âmbito de iniciativas multilaterais voltadas ao tema, sendo a mais abrangente delas a Ação 1 do BEPS (base erosion and profit shifting) chamada “Desafios da Economia Digital”. Trata-se, portanto, de assunto de natureza diversa da tributação sobre o consumo de bens e serviços.
Especificamente sobre a tributação de transações comerciais diretas entre o produtor e o consumidor, muito comuns na economia digital, como o consumo de um serviço de streaming de vídeo, os países têm enfrentado dois principais desafios: o primeiro, nas transações realizadas por fornecedores estrangeiros a consumidores nacionais; o segundo, mais específico na transação com intangíveis, refere-se à determinação do local de consumo.
Melina Lukic relata soluções implementadas por países que adotam o IVA: nas transações entre fornecedores estrangeiros e consumidores finais, vem sendo tornada obrigatória a inscrição daqueles em cadastros nacionais, com a respectiva obrigação de recolhimento do tributo no país de destino.
Quanto à definição do local de consumo de serviços e intangíveis, na linha de Diretrizes da OCDE, são duas as situações com regras distintas: nas operações entre pessoas jurídicas, o tributo é devido ao país onde está situado o adquirente e, havendo múltiplos estabelecimentos, será devido ao país onde for utilizado o serviço ou intangível. Vale lembrar que, pela regra da não cumulatividade, o adquirente tem todo o interesse de exigir que o fornecedor formalize a operação, de modo a lhe garantir créditos do IVA nas operações subsequentes.
Nas operações com consumidor final, Lukic esclarece haver a regra geral, com bens ou serviços prestados presencialmente, sendo tributada a operação na jurisdição em que o fornecimento ou prestação foi realizado fisicamente. Nas outras situações, como a contratação de um streaming de vídeo, por exemplo, o local de tributação será aquele em que o adquirente ou tomador do serviço possui residência habitual.
CAPÍTULO 8
Timing da reforma
Mito: é inoportuno promover uma reforma tributária em momento de crise econômica, pois isso dificultará ainda mais a recuperação das empresas.
Contraponto: não cabe ao sistema tributário subsidiar empresas, negócios ou setores, quer em situações de crise, quer em situações regulares. Numa economia de livre mercado e que favorece a concorrência, prevalecem os mais eficientes, o que implica crescimento econômico, mais emprego e mais renda. Além disso, diante desta crise, a reforma tributária é o principal instrumento de que dispomos para destravar novos investimentos, dar fluidez aos processos produtivos baixando os custos de transação e, com isso, permitir o crescimento orgânico do PIB.
Conforme estudo recente do IPEA, o PIB brasileiro pode crescer 5,42% a mais até 2023 caso seja aprovada a proposta de criação do IBS à alíquota única de 25%.
Segundo João Maria de Oliveira, a mudança induzirá ganhos diferenciados em termos de PIB, emprego e produtividade nos diversos setores da economia, pois existe má alocação produtiva gerada pelo atual sistema de tributos sobre o consumo de bens e serviços (sobre má alocação de recursos, ver Mito nº 3, acima).
O aumento do PIB em função da reforma do modelo brasileiro de tributação sobre o consumo também foi estimado por Bráulio Borges, que apontou um ganho potencial de 20% de PIB potencial em 15 anos, considerando somente os efeitos de primeira ordem, e de 24% a longo prazo.
Esse impacto positivo ocorreria porque a reforma promoveria mudanças estruturais que melhorariam a eficiência de alocação de recursos na economia, levando a um volume maior de produção a partir da mesma quantidade de trabalho, máquinas e insumos disponíveis, ou seja, haveria ganhos de produtividade, que constituem o principal motor do crescimento econômico de longo prazo.
São mudanças que envolvem cobrança do tributo no destino (local do consumo), creditamento amplo, redução da quantidade de alíquotas e extinção de benefícios fiscais. Todas se mostram relevantes para o crescimento econômico do país, como destacado pela OCDE em estudo voltado ao Brasil, no qual foi recomendado consolidar os tributos indiretos estaduais e federais em um tributo sobre valor adicionado com base ampla, creditamento integral e alíquota zero nas exportações.
Sendo um imposto não-cumulativo e que incide em todas as etapas de produção e comercialização, o IVA é um tributo neutro. Assim, a reforma tributária reduzirá distorções alocativas e formas ineficientes de organização da produção, pois a incidência do IVA independe da forma como está organizada a produção e a circulação.
Além disso, ainda que se preveja impacto negativo sobre algum setor específico, é importante esclarecer que, no caso de aprovação da PEC, o Congresso Nacional ainda terá que discutir e aprovar uma Lei Complementar para padronizar as regras de cobrança do imposto. Após aprovada a lei, como lembra Appy, será necessário esforço coordenado dos entes federativos, União, Estados e Municípios, na estruturação e implementação de um sistema para gestão do novo imposto.
Assim, mesmo que a lei seja aprovada em 2021, o IBS só passará a ser cobrado no ano seguinte, em razão de regra constitucional que veda cobrar tributos no mesmo exercício financeiro da lei o tenha instituído.
Além desse cronograma enrijecido pelas regras constitucionais e de ordem prática, vale lembrar que, ao longo dos dois primeiros anos, o IBS será cobrado a uma alíquota de 1%, compensável com o valor devido a título de Cofins.
A soma de todos esses prazos evidencia a falta de fundamento do argumento que relaciona a crise atual com mudanças efetivas que ocorrerão, no mínimo, daqui a três anos.
Fonte: https://www.jota.info/especiais/sete-mitos-sobre-a-reforma-tributaria-02042021 por MARCOS LISBOA<https://www.jota.info/autor/marcos-lisboa>, MARCOS JOSÉ MENDES<https://www.jota.info/autor/marcos-jose-mendes>, SÉRGIO WULFF GOBETTI<https://www.jota.info/autor/sergio-wulff-gobetti>, BRENO FERREIRA MARTINS VASCONCELOS<https://www.jota.info/autor/breno-ferreira-martins-vasconcelos>